Monday, May 28, 2007

Acabo de receber um forward com este texto da professora Carla Machado (escreve todas as quintas no pùblico). Aproveito para recomendar as suas crónicas do Público e para divulgar o texto dela no meu blog, porque acho que deve ser lido pelo maior nº possível de pessoas.

Para quem não sabe: a Professora Carla Machado é a minha orientadora de doutoramento. Foi minha professora durante a licenciatura e foi sem dúvida a professora que mais me marcou. Para mim e para algumas das minha colegas ela é uma espécie de "modelo a seguir", de referência, no departamento de psicologia da universidade. Foi muito por causa dela que optei pela área da psicologia da Justiça, e foi COMPLETAMENTE por causa dela que conheci esta área da "peace psychology" e tive esta oportunidade de vir para Boston trabalhar nesta equipa de investigação. Quando decidi fazer doutoramento nunca me passou pela cabeça ter outro orientador que não a professora Carla. Leiam o texto e tenho a certeza que perceberão porque o divulgo e porque acho que a minha orientadora é alguém excepcional não só em termos académicos mas também, e mais importante, como pessoa.

"Um olhar necessário", in Público, 28.05.07

"Na rua, são sobretudo as crianças que olham. "Mãe (é sempre mãe;
porque será?), porque é que aquela senhora usa aquele lenço?", "Mãe, o
que é que ela tem?", "O que lhe aconteceu?". Alguns adultos respondem
às perguntas das crianças. Outros, ainda, olham também. Há mesmo quem
chegue a virar a cabeça e a prolongar a mirada.

Suponho que é normal. Demasiado habituados a um país uniforme,
estranhamos o que nos arranha a superfície das expectativas. Já não
estranhamos o cego nem o aleijado a pedir - desses iludimos a
presença, desviando o olhar. Mas ainda olhamos quem fala ou parece
diferente, na cor, no aspecto ou no agir.

Primeiro tive medo, confesso. A cabeleireira, teimosamente guardada no
armário, olhava para mim, a insinuar: "Não precisas de passar por
isso. Podes parecer normal". Ainda cedi, algumas vezes. Mas era como
se outra que não eu me habitasse. Outra, saudável. Não eu, com cancro.
Depois decidi: "Não uso mais". E assim tem sido. Olhem, se quiserem.
Aliás, façam o favor de olhar. Porque eu estou aqui, neste espaço, com
o mesmo direito de aqui estar que antes tinha. E é bom que vejam que,
como eu, muitos outros diferem. Que a saúde, como a normalidade, é uma
ficção que só temporariamente habitamos. E que, a qualquer momento,
qualquer um de nós pode ser o temido rosto do "Outro".

Olhem para mim e vejam-me.

Não olharam. Não olharam a tempo, no caso da criança que foi forçada a
afastar-se da escola por ter cancro. E por não terem olhado a tempo,
às dores já sentidas juntaram outra dor. Não há desculpa para causar
dor a quem habita a dor mais funda de todas, a de poder perder um
filho. Ou para ferir quem é mais frágil, embora tenham muitas vezes
almas fortes, as frágeis crianças que povoam os corredores dos IPO.

É certo que não há nunca, nestas coisas, vilões e vítimas passivas.
Que as pessoas por vezes reagem intempestivamente a situações
"pequenas" (não sei se foi o caso, mas o que é "pequeno" face ao
sofrimento de uma criança e à impotência de quem a quer proteger?).
Mas também é certo que as coisas só chegam a este tipo de extremos
porque alguém que devia ter visto e agido não olhou e não o fez. Para
que serve uma escola, afinal, se não cuida dos mais fracos que lhe são
entregues?

São, já disse, as crianças as primeiras a olhar. Porque ainda não não
dominam a arte do subterfúgio, querem saber: "Mãe, porque é que aquela
senhora não tem cabelo?". São as crianças, como no caso daquela
escola, quem por vezes é mais cruel. Mas não é necessariamente assim.

Há alguns meses, a minha filha de quatro anos, chorou quando lhe disse
que ia ficar sem cabelo. E disse que tinha medo. Hoje chama-me com
ternura "Ruca" (o seu boneco favorito, também sem cabelo) e "mãe
carequinha" quando me quer gozar. Não foi difícil. Bastou não
contaminar o seu olhar com o nosso medo. Será pedir de mais a quem é
adulto?"

Carla Machado

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

E a tua professora consegue pôr isso em palavras...E a tua professora consegue dar-nos a ver, a sentir, a experiência da vida truncada pela doença...
Não há hipótese de fugir aos lugares comuns em relação a coisas deste calibre. Provavelmente porque os lugares comuns traduzem a nossa vontade de nos posicionarmos na perspectiva segura dos "outros" e assim (tentar)exorcizar o medo. Aqui vai o meu cliché: p... de vida!!!

11:08 AM  

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